Bom, acho que ninguém aqui sabe, mas eu tenho o hobby de escrever.
“Ahh, tá de brincadeira né? Se tu tem um blog, é ÓBVIO que tem o hobby de escrever, tonto.”
Mas o que muita gente não sabe é que eu curto escrever, de vez em quando, umas histórias de terror, como essa que eu tou postando agora.
Esse conto eu escrevi pra uma antologia de uma editora, só que não foi selecionado, talvez por ser uma merda, sei lá, mas eu curti, e resolvi compartilhar aqui no blog. Bora lá.
La Méduse
E o circo chegou!
Um alvoroço tomava conta da principal praça daquela pacata cidadezinha do interior de Minas Gerais. A cidade não tinha mais que 15 mil habitantes, e se mantinha basicamente de empresas mineradoras, atividade muito lucrativa na região, rica em minérios. Crianças corriam pra ver os coloridos e luxuosos vagões e carroças, seguidos por carretas, com as seguintes palavras escritas em francês: Le cirque des horreurs.
O objetivo da comitiva que esbanjava ostentação era realmente chamar a atenção de todos daquela pequena cidade para os espetáculos que começariam a ser exibidos dentro de poucos dias. E o clima festivo promovido pela chegada do circo já começava a contagiar boa parte dos habitantes da cidade. Foi o caso de Paulo.
Paulo não era um dos caras mais populares da cidade. Era tímido, envergonhado e curioso. Muito curioso. Era o que se conhece como nerd. Passava horas pesquisando sobre os mais variados assuntos, alguns sem a menor relevância, mas gostava disso para preencher seu tempo. Porém isso não atrapalhava em nada seu namoro com Marcela.
Marcela era uma menina bonita, tinha olhos claros e cabelo bem preto sobre os ombros. 19 anos, mesma idade de seu namorado. Muitos não entendiam o que ela via em Paulo, mas parece que essa “estranheza” era algo que atraía a menina, mesmo ela achando que seu namorado às vezes se perdia um pouco em seus pensamentos, e esquecia-se da vida.
Naqueles dias que sucederam a chegada do circo, Paulo andava eufórico, e Marcela estranhou, sentiu algo diferente nas atitudes dele, e quis saber o porquê. Encontraram-se em uma sorveteria perto do terreno baldio que serviria para hospedar o extravagante circo recém-chegado à cidade.
– Cê tá bem animado né amor? O que houve?
– Ué, o Le cirque des horreurs tá aqui, nunca ouviu falar dele? – Perguntou Paulo, fazendo um gesto com a cabeça em direção à lona que começava a se erguer.
– O circo né? Não, não pensei que era conhecido. Pra te falar a verdade, nem gosto de circos – Disse Marcela, se segurando pra não contar sobre seu medo de palhaços – Mas o que tem de especial nesse?
– Esse é o circo de Monsieur Jacques Laforet – Explicou Paulo, imitando um sotaque francês – Um francês maluco que diz possuir em seu circo as criaturas mais bizarras e fascinantes do mundo, capturadas nos quatro cantos do planeta. Não perco esse espetáculo por nada nesse mundo! Quer ir comigo, amor? Soube que vai inaugurar amanhã, às 11h.
– Tudo bem, o que eu não faço por você né? Disse Marcela, contrariada.
Conversaram sobre outras coisas. Faculdade, estágio, família. Mas a cabeça de Paulo viajava, e Marcela sabia exatamente sobre o que o namorado estava divagando.
– Então eu falei pra minha mãe… Paulo, você tá me ouvindo? – Interrompeu-se Marcela, olhando para o rosto de seu namorado.
– Ah sim, claro. Só tava pensando em algumas coisas aqui.
– Você tá mais concentrado nessa porcaria de circo do que em mim! Vou pra casa, amanhã a gente se fala. – Nesse momento, levantou-se e deixou Paulo sozinho, pensativo.
Já era tarde da noite, mas Paulo não conseguia dormir, rolava de um lado para o outro da cama. Estava ansioso, pois a grande estreia do circo era no dia seguinte. Só conseguia pensar nas criaturas bizarras e em todas as coisas diferentes que veria dentro daquela lona colorida.
Enfim, adormeceu. E teve o sonho mais estranho de sua vida.
Sonhou que estava andando num terreno muito grande, e não havia nada em volta, somente um grande vagão bem no meio do lugar. O vagão era pintado com as com as cores verde e vermelho, e se assemelhava aos vagões do Le cirque des horreurs, porém não era fechado como os do circo. Em uma lateral, lia-se “La Méduse”. Na outra lateral, havia uma abertura, por onde, através de um vidro, Paulo podia ver o que havia dentro.
Era uma menina com a pele estranha, pareciam escamas bem finas por todo o seu corpo. Usava uma camisola surrada, e uma máscara que cobria a parte inferior de seu rosto. Apesar de ser um sonho, Paulo podia ver claramente os detalhes. Seus olhos eram grandes e assustadores, e completamente negros, encarando o rapaz. De alguma forma, ficou contemplando a escuridão daquele olhar por um tempo. Parecia enfeitiçado. Seu rosto tinha cicatrizes e minava sangue de pequenos cortes próximos aos olhos, dando a impressão que a criança chorava sangue. Em uma das mãos, tinha um facão enorme que reluzia o luar que entrava pelo vidro do vagão. Na outra mão, uma boneca sem cabeça.
O cabelo da menina tinha um movimento esquisito, parecia que tinha vida própria. – Muito estranho, pensou Paulo.
Correu os olhos então, pelo vagão, reparou no chão salpicado de sangue da pequena criatura e em um saco preto que jazia no outro extremo do vagão. O saco então começou a se mexer, chamando a atenção de Paulo. A menina correu desajeitada para abrir o saco preto, revelando cabelos pretos lisos e um rosto muito familiar para Paulo.
Era Marcela, que mantinha uma expressão calma ao sair do saco e ajoelhar-se, ficando de frente para a menina, que agora fixava os olhos nela. A criatura estranha largou a boneca, e sem tirar os olhos de Marcela, tirou a máscara, mostrando um queixo comprido e uma boca roxa, com dentes pontiagudos enfileirados, como os de um predador.
Paulo olhava a cena horrorizado. Tentava gritar, bater no vidro, mas nenhuma das duas parecia ouvir. Estavam se encarando por um tempo, e então, a menina se mexeu. Passou a mão nos cabelos de Marcela, desceu o dedo indicador, com a unha afiadíssima pintada com um esmalte vermelho descascado, por sua têmpora, até chegar ao queixo da moça. Marcela parecia paralisada, encarando fixamente os olhos da menina.
A criatura, então, forçou a cabeça de Marcela pra trás com violência, e começou a sorrir. O sangue que saía de seu rosto caiu sobre o rosto da moça, que ainda estava em estado de choque, agora com a boca aberta. A menina estranha virou-se para Paulo, que gritava desesperado, batendo os punhos contra o vidro, e deu uma gargalhada que subiu pela espinha do rapaz, arrepiando seus pêlos da nuca. Então, com um movimento rápido, a criança levantou o facão, que adquirira uma cor sinistra no vagão mal iluminado, e desferiu um golpe certeiro no pescoço de sua vítima, arrancando-lhe a cabeça com facilidade. O corpo de Marcela continuou ajoelhado por uns segundos, espirrando sangue por todo interior do vagão, sujando até mesmo o teto. O vidro logo ficou salpicado de sangue também, e Paulo pôde perceber que sua mão, que estava apoiada no vidro, agora estava suja de sangue também. Voltou a atenção para o vagão novamente, e agora, a menina o encarava de perto, com um brilho diferente em seus olhos sangrentos, e exibindo a cabeça de Marcela em uma das mãos. Nesse momento, Paulo acordou.
Abriu os olhos assustado, olhou no relógio e viu que dormiu demais. Já eram 10:45h, e dali quinze minutos, o Le cirque des horreurs faria sua primeira apresentação. Tudo bem que ficara muito impressionado com o sonho que acabara de ter, porém, sabia que não deveria ser nada demais. Tive esse sonho porque estou muito ansioso pelo circo, pensava Paulo, levantando-se e se trocando. Apanhou o telefone e ligou para o celular de Marcela.
– Amor, cê tá pronta? Perguntou ele, calçando os sapatos.
– Faz tempo, ia te ligar agora. Acabei comprando os bilhetes. Tô aqui na entrada te esperando.
– Ah, obrigado, tô saindo daqui agora.
Ao chegar à entrada do circo, viu Marcela. A moça estava impaciente. Sentia-se desconfortável com aquele ambiente circense, mas procurava não demonstrar ao namorado. Beijou-a, pegou seu bilhete, segurou em sua mão, e passou pela bilheteria. Não tinha fila, pois o espetáculo já havia começado e todos estavam sentados em seus lugares, apreciando o show. Viu de relance um vagão verde e vermelho, e se assustou com a semelhança com o vagão de seu sonho. Marcela puxou sua mão, e assim, adentraram no circo.
Sentaram-se em tempo de ver um número estranho, que trazia um malabarista corcunda, com o rosto horrivelmente deformado. Tinha marcas e vergões pelo corpo, que para Paulo, simbolizava maus tratos provenientes de um treinamento rigoroso. Ele saía-se bem, e parece que gostava de toda a atenção do público, pois retribuía todos os aplausos com um sorriso. Saiu de cena, e o apresentador do espetáculo e dono do circo, Monsieur Jacques Laforet, apareceu no meio do picadeiro. Com uma cartola e uma bengala com empunhadura de prata no formato de uma cabeça de leão. Parecia mancar. Sorria para todos, e parece que a plateia gostava daquele homem carismático, pois delirava a cada aceno ele. Começou a falar em um português arrastado e cheio de sotaque:
– Respeitável público. Venho trazendo para este espetáculo, as criaturas mais fantásticas e estranhas do mundo. Fiquem a vontade, e apreciem o show. Não tenham medo, alguns, por sua natureza e sua cultura diferentes, não se sentem confortáveis com os olhares de muitas pessoas. Alguns irão olhar para vocês e encará-los por um longo tempo. Mas não temam, apenas não olhem em seus olhos, e tudo ficará bem. Vocês acabaram de ver a apresentação de Johan, o malabarista corcunda alemão. Agora façam silêncio, por que o que vão presenciar agora é algo perturbador.
Marcela olhou para Paulo, apreensiva. Ele deu um beijo na testa da namorada e segurou sua mão.
O apresentador agora tinha um semblante sério, e mantinha o tom de voz mais baixo. Contava a história de sua próxima atração.
– Nas selvas do Congo, foi encontrada uma criatura primitiva. As tribos que habitam as redondezas dizem que são demônios que escaparam do inferno e perambulam pela mata fazendo vítimas e deixando um rastro de sangue por onde passam. – Fazia gestos com a mão, para prender o público, e não se ouvia um só barulho na plateia. – Em minhas jornadas em busca dessa fascinante criatura devoradora de homens, me deparei com uma em especial, que me fez isso.
Levantou um pouco a bainha da perna esquerda da calça, revelando uma prótese metálica que reluzia, refletindo os holofotes. Todos fizeram cara de espanto.
– Apresento a vocês, Le Congolaise Démon. – O homem se retirou mancando, dando lugar a um homem alto e forte de semblante selvagem. Na mão esquerda, empunhava um chicote com uma garra de metal na ponta, e na mão direita segurava uma corrente esticada, que sumia entre as cortinas atrás do picadeiro. Deu um puxão na corrente, e o Demônio Congolês apareceu.
Era um animal diferente de tudo que Paulo já tinha visto. Estava fascinado. Seu corpo era coberto por pêlos ruivos espessos, e protuberâncias redondas projetavam-se de sua espinha dorsal. Dava pulos, em direção à plateia, que olhava pasma para a criatura. Tinha um rosto parecido com um macaco, porém, sua expressão era de puro ódio. Babava de raiva, e suas garras brilhavam, à medida que ameaçava os espectadores, fazendo gestos que dava a impressão que arrancaria o olho de alguém, se tivesse a uma distância menor. Frequentemente cuspia algo na direção da plateia, mas todos estavam tão distraídos que nem perceberam o que era. O monstro dava a volta no picadeiro, guiado por seu capataz. Chegou perto de onde Paulo e Marcela se encontravam, e cuspiu na direção dos dois. Marcela, curiosa, olhou no chão e viu o que o animal estava cuspindo, e ficou horrorizada, soltando um grito.
Era a ponta de um dedo humano em decomposição. Todos se voltaram pra ela, e a criatura se agitou mais ainda, obrigando o homem gigantesco a golpear com o seu chicote direto no rosto do Demônio, fazendo um corte profundo com a garra metálica da ponta. Do corte jorrava um sangue escuro brilhante, quase preto. O homem puxou a criatura pra fora, e logo voltou o apresentador, distraindo a atenção do público e arrancando mais palmas com o seu carisma.
– Quero ir embora, amor! Não quero mais ver isso! – Chorava Marcela. Porém Paulo acalmou-a, dizendo que já tinha passado, e que logo o espetáculo acabaria e iriam para casa.
O show de horrores durou mais uma hora, mostrando homens severamente queimados, com o corpo em carne viva e bocas costuradas faziam apresentações de mímica, crianças deformadas brincavam com gêmeos siameses, mulheres horrendas, com implantes de animais no lugar de membros amputados desfilavam, arrancando olhares horrorizados de todos da plateia.
E então, o apresentador voltou para apresentar seu último número. O famoso Grand Finale, que todo espetáculo deve ter.
– Na mitologia, uma criatura sempre me fascinou. Dizia-se que o simples olhar dessa mulher castigada pelos Deuses, transformava qualquer homem em pedra. Seus cabelos eram serpentes vivas, que possuíam o mais poderoso veneno entre todas as criaturas terrestres. Na história, ela foi morta por Perseu. Mas em minhas viagens, encontrei o covil dessa criatura e descobri que não era somente uma lenda. A Medusa é real, e hoje, apresento-a a vocês, mas lembrem-se, não olhem nos olhos dela. Tragam La Méduse!
A cortina do picadeiro, que estivera fechada durante todo o show, abriu-se, revelando uma cela de pedra, com barras de aço na frente, que foi empurrada para o meio do picadeiro.
Paulo enrijeceu na hora. Suava frio. Então o sonho foi real? A criatura que estava confinada na cela era idêntica a de seu pesadelo. Marcela olhava para Paulo, que estava completamente vidrado na menina estranha do picadeiro. Ela cutucou o braço do namorado, e chamou pelo seu nome. Sem resposta.
A criatura olhava no rosto de todas as pessoas do público, chorando sangue, porém ninguém retribuía o olhar. Só se atreviam a olhar para a criatura quando ela olhava para outro lado. A atmosfera do lugar ficou pesada, como se o medo tomasse conta do circo todo. Então, a Medusa fixou seu olhar em um lugar. Era o assento ocupado por Paulo, que encarava a criatura de igual pra igual. Estava paralisado. Marcela agora gritava, tentando puxar o namorado pela mão, mas ele não se movia.
De repente, Medusa agarrou duas das barras de ferro de sua cela, e com um movimento forte, afastou-as, abrindo caminho para escapar de seu cubículo. O desespero foi geral, todos saíram correndo em direção à saída do circo, acotovelando-se no mais puro pânico, enquanto o enorme capataz aparecia de volta em cena, com o chicote empunhado. Medusa voltou-se para trás, e fitou os olhos negros nos olhos selvagens do homem. O homem largou o chicote no chão, e caiu de joelhos, paralisado. Medusa deslizou a mão em direção ao pescoço do homem e com um só golpe de unhas, abriu um corte da garganta até a barriga do gigante, expondo suas entranhas e lavando o picadeiro com o sangue espesso do enorme homem. A criatura agora se voltava novamente para Paulo, que tinha seu braço puxado por Marcela, num esforço inútil de tirar o namorado dali.
– Parece que a Medusa já escolheu o companheiro dela pra hoje. – Disse uma voz atrás de Marcela. Virou-se e deu de cara com Monsieur Jacques. O homem, com um gesto brusco, golpeou a cabeça de Marcela com sua bengala, fazendo-a sangrar muito. Paulo parecia nem ligar, estava com o olhar fixo na criatura que agora caminhava rapidamente em sua direção.
– Vamos deixa-los a sós, mocinha. – Monsieur Jacques agora puxava Marcela, totalmente desorientada, pelo braço, arrastando-a. Atravessou o picadeiro puxando a menina e jogou- a na direção do Demônio Congolês, que estava preso no canto do picadeiro, aguardando com anseio por uma refeição oferecida por seu mestre. Marcela ainda gritava de desespero quando, com mordidas violentas, o animal arrancou sua perna esquerda sem fazer esforço. Devorou a moça por inteiro, não sobraram nem os ossos.
Paulo encarava os olhos negros de Medusa, ignorando os gritos de Marcela. Sentia uma tranquilidade naqueles olhos, uma tranquilidade que só poderia ser comparada com a morte. E estava certo que encontraria a morte se continuasse fascinado por aquele olhar intenso, mas não tinha escolha. Ela o tinha escolhido. E a ele, só restava se entregar ao encantamento fatal daqueles olhos pretos e sangrentos.
E então, Medusa, a um palmo de distância do rosto de Paulo, abriu um sorriso, e avançou sobre sua imóvel presa.